Senna tinha uma empresa nas Bahamas, exigia status de primeiro piloto, era proibido de esquiar, andar de moto e voar de asa-delta, dava parte dos prêmios aos mecânicos e era obrigado a lidar com a imprensa de “forma totalmente profissional”.
Tudo isso estava em contrato.
Ou pelo menos em um dos seus contratos na F-1.
Está na rede, no site da Legacy Tobacco Documents Library, o contrato do brasileiro com a Lotus para os Mundiais de 1987 e 1988.
A equipe tinha fortes ligações com a R.J. Reynolds, naquela época utilizando a marca Camel. Daí que o documento foi parar no tal arquivo, um compêndio virtual sobre a indústria de cigarro mantido pela Universidade da Califórnia.
O link direto é este aqui.
A dica foi do Bruno Gibin, a quem o blogueiro agradece.
São 19 páginas de um documento histórico, cheio de curiosidades, que ajuda a entender um trecho importante da carreira do tricampeão, então um piloto em busca da consagração.
Vale, ainda, pela raridade do fato. Eu nunca havia lido um contrato de piloto de F-1. Até hoje.
Senna estreou na categoria em 1984, pela Toleman. No ano seguinte, já era piloto da Lotus.
Estamos falando, portanto, do contrato para suas terceira e quarta temporadas pela equipe. Esta última acabaria não acontecendo: o brasileiro fez valer uma cláusula, rompeu com o time e acertou com a McLaren para 1988.
Começando pelo começo.
O contrato foi assinado em 1º de janeiro de 1987. E isso já guarda uma curiosidade: não leva a lavra do brasileiro, mas de um advogado, seu procurador. No sentido literal da coisa, Senna não assinou o papel.
As duas partes são Team Lotus International Limited, com sede de Wymondham, na Inglatera, e Ayrton Senna da Silva Promotions Limited, com sede em Nassau, nas Bahamas. Um paraíso fiscal.
É válido por dois anos, mas estipula uma data-limite para rescisão, partindo de qualquer lado, sem exercício de preferência ou multas: 8 de agosto de 1987.
Sabemos, agora, que Senna usou esta saída quando se viu descontente com o desempenho do carro e recebeu um aceno da McLaren.
O contrato também determina que, antes desta data, nenhuma parte negociasse com terceiros. Senna provavelmente não seguiu esta cláusula à risca: no dia 9 de agosto, na Hungria, a imprensa já cravava sua ida para a McLaren, o que foi oficializado menos de um mês depois, em 4 de setembro.
Há obrigações para os dois lados, como em qualquer contrato.
Senna cede para a Lotus a “exploração de seu nome e fama”. Compromete-se a mudar da Inglaterra, por uma questão fiscal _foi morar em Mônaco, como sabemos. Abre mão de praticar os esportes radicais já citados.E garante presença em eventos de patrocinadores da equipe, até 31 de dezembro, desde que avisado com dez dias de antecedência. Despesas por conta do patrocinador.
Já a Lotus faz um seguro de vida de £ 50 mil para o piloto, o que, com todas as correções, hoje equivaleria a R$ 405 mil. Uma piada. Desobriga-o a fazer propagandas de cigarro. Cede espaços no capacete e no macacão para seus patrocinadores pessoais. Garante que naquele ano terá motores Honda, patrocínios da Elf, da R.J. Reynolds (Camel) e da própria Honda, e que o francês Gerald Ducarouge será o engenheiro-chefe.
Mais: na cláusula 4.3, a Lotus concorda em “empenhar todos os esforços para que os carros da equipe sejam os mais idênticos dentro do possível” e que o status de Senna “será o de número 1, com todas as prioridades na alocação de equipamentos, se houver necessidade”. Pobre Nakajima.
O capítulo grana está nos apêndices.
Por aquele primeiro ano, Senna ganhou salário de US$ 1,5 milhão. Com todas as correções e conversões, isso equivaleria a US$ 4,7 milhões atuais, ou R$ 10,7 milhões.
(Alonso e Hamilton ganham, hoje, US$ 25 milhões, segundo a “Business F1” . Massa recebe US$ 7,7 milhões. Sinal dos tempos.)
O acerto para 1988 era de US$ 1,65 milhão.
Deve ter ido ganhar muito mais na McLaren, contrato anunciado à época como “o maior da história”.
Havia ainda um acerto de bônus por ponto que ele conquistasse: US$ 4 mil no primeiro ano, US$ 5 mil no segundo.
Senna terminou aquele Mundial em terceiro, com 57 pontos. Mais US$ 228 mil pra conta, portanto.
O título valeria US$ 250 mil extras.
Ele recebeu ainda US$ 40 mil por ano para custear despesas de viagens e estadia.
Em caso de prêmios em dinheiro oferecidos por promotores de corridas, equipe e piloto ficavam com 45% cada. Os 10% restantes iam para os mecânicos.
E uma curiosidade que sempre tive: com quem ficam os troféus?
Este contrato rezava que metade ia para a sede da equipe, metade ficava com o piloto. Mas a prioridade na escolha era da Lotus.
Ah, sim: algo de que eu não lembrava. Lembram do indefectível boné do banco Nacional? Em 1987, Senna não o usou por força de contrato.
“Em consideração aos esforços da Lotus por recursos, a Ayrton Senna Promotions concorda que o piloto usará o boné que a equipe definir em áreas públicas dos circuitos, testes, eventos com a imprensa e entrevistas de TV, substituindo o boné do Nacional que ele usou em 1986. Continua a obrigatoriedade pelo uso do boné da Goodyear nas cerimônias de pódio.”
Como se vê na foto acima, em Jacarepaguá, o time acabou vendendo o boné para a Elf.
Um achado, um tesouro. Vale a pena ler e guardar.